Você sabia que existem casos em que o patrimônio dos sócios e administradores de uma empresa pode ser usado para satisfazer um credor ou um consumidor lesado? Esse fenômeno se chama desconsideração da personalidade jurídica e está previsto na legislação brasileira.
Quem tem alguma familiaridade com o meio jurídico provavelmente já leu ou ouviu o termo, que é bastante relevante nesse âmbito e no atual cenário. Tal instituto do Direito é usado para reconhecer a relatividade da personalidade jurídica nas sociedades e limitar ou coibir o uso indevido do privilégio da pessoa jurídica (PJ).
Além disso, há alguns anos, o Novo Código de Processo Civil trouxe mudanças para o procedimento em situação de incidentes desse tipo. Quer saber mais sobre o assunto? Acompanhe este artigo para conferir o que é a desconsideração da personalidade jurídica, quando ocorre e quais são os tipos existentes.
O que é a desconsideração da personalidade jurídica?
Trata-se de um instrumento jurídico que permite relativizar a autonomia da personalidade jurídica de uma empresa, organização ou outro tipo de pessoa jurídica com a finalidade de atribuir responsabilidades aos seus administradores e sócios.
De acordo com o portal Vade Mecum Brasil, o termo tem dois significados principais:
- Ficção mediante a qual, para efeitos patrimoniais, tem-se como inexistente uma pessoa jurídica;
- Figura mediante a qual se tem como responsável por uma obrigação, em vez da pessoa jurídica, seu representante, sócio ou membro.
Em função do seu significado, o instituto é também chamado de desconsideração da autonomia patrimonial da pessoa jurídica.
Qual é a finalidade da desconsideração de personalidade jurídica?
Uma vez que a pessoa jurídica tem uma personalidade diferente daquela de seus fundadores, normalmente, as pessoas que criam uma sociedade não respondem pelas obrigações da mesma. Existe, portanto, uma distinção, uma separação patrimonial entre a pessoa jurídica e as pessoas físicas dos sócios e administradores.
Nesse contexto, a desconsideração da personalidade jurídica é um importante instrumento para o exercício da atividade empresarial, sendo uma tentativa de adequar a pessoa jurídica aos fins para os quais ela foi criada. Dessa forma, ela reforça a autonomia patrimonial da PJ e a preservação da empresa ou organização.
Como surgiu a desconsideração da personalidade jurídica?
Ao permitir que as pessoas atuem diretamente em negócios assumindo responsabilidades, a personalidade jurídica surgiu como um estímulo ao exercício da atividade empresarial, ou seja, com o intuito de incentivar o desenvolvimento da economia. A sua atribuição, diferenciando-a da personalidade dos sócios, reduz o risco empresarial.
Contudo, a personalidade jurídica é reconhecida, mas deve, é claro, ser usada com propósitos legítimos. No entanto, estes podem ser desvirtuados em certas situações e, para evitar que isso aconteça, a doutrina da separação patrimonial entre pessoa jurídica e seus membros não pode prevalecer em alguns momentos.
Como episódios de uso indevido começaram a ocorrer, com administradores e sócios usando a personalidade jurídica para a não responsabilização e para evitar o comprometimento do seu patrimônio, a desconsideração da personalidade jurídica foi pensada inicialmente pela jurisprudência para resolver essas situações abusivas.
Nesse sentido, trata-se, portanto, de uma medida para lidar especificamente com esses contextos, limitando e coibindo o uso não correto do privilégio da pessoa jurídica.
Como funciona a desconsideração da personalidade jurídica?
A desconsideração traz a ideia de que o princípio da autonomia patrimonial da pessoa jurídica não é absoluto e deve ser aplicada em contextos em que existem atos fraudulentos que visam prejudicar credores.
Uma situação abusiva da autonomia patrimonial ocorre quando sócios e administradores não deixam na sociedade bens suficientes para o pagamento das dívidas da pessoa jurídica. Nesse caso, os credores acabam por ficar com os seus interesses desatendidos, enquanto os membros da sociedade seguem normalmente as suas vidas.
Então, quando a sociedade possuir insuficiência de patrimônio dos seus sócios, prevê-se a desconsideração da personalidade jurídica. Desse modo, o patrimônio dos sócios servirá para quitar as obrigações da sociedade.
A legislação e a desconsideração da personalidade jurídica
A desconsideração da personalidade jurídica está prevista no Código Civil e no Código de Defesa do Consumidor (CDC), devendo-se ser utilizada aquela que for adequada à situação em questão e cumprindo-se os requisitos, que são distintos.
Lei da Liberdade Econômica e Artigo 50 do Código Civil
A medida é destaque da Lei Nº 13.874/19, conhecida como Lei da Liberdade Econômica, pois instituiu a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, que trouxe maior clareza sobre a sua aplicação.
Primeiramente, o Art. 49-A estabelece que “a pessoa jurídica não se confunde com os seus sócios, associados, instituidores ou administradores”. Além disso, determina que “a autonomia patrimonial das pessoas jurídicas é um instrumento lícito de alocação e segregação de riscos”.
No entanto, a lei também alterou o Art. 50 do Código Civil sobre casos em que o instituto afasta o princípio da autonomia patrimonial para responsabilizar a sociedade por obrigação do sócio:
“Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso.”
Desconsideração da personalidade jurídica no CPC
Como vimos na citação do Art. 50, o Código Civil impõe que, para que ocorra a desconsideração da pessoa jurídica, haja o abuso da personalidade jurídica – caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial.
O antigo Código estabelecia a caracterização dos casos de abuso da personalidade jurídica, mas não determinava os efeitos de algumas obrigações da sociedade aos bens dos administradores ou sócios.
Com as alterações trazidas pela Lei 13.874/19, o texto ficou mais claro e objetivo e menos sujeito a diferentes interpretações. Nesse cenário, o judiciário passou a considerar o que de fato define o texto legal do Artigo 50.
Desconsideração da personalidade jurídica no CDC
No Código de Defesa do Consumidor existem normas específicas sobre a desconsideração da personalidade jurídica. E o teor é diferente do CPC, pois não se aplicam os requisitos de desvio de finalidade e confusão patrimonial.
Na verdade, os requisitos são mais amplos e não é preciso que haja necessariamente a caracterização de fraude. Mais precisamente, de acordo com CDC, o incidente acontece em relações de consumo nas quais existam as seguintes situações:
- abuso de direito;
- excesso de poder;
- infração da lei;
- fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social;
- falência;
- estado de insolvência;
- encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.
Isso está estabelecido no Art. 28 que diz que “o juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração”.
Quais são as teorias da desconsideração da personalidade jurídica?
A Teoria Maior e a Teoria Menor são as duas teorias existentes sobre a desconsideração da personalidade jurídica.
Teoria Maior
Segundo a Teoria Maior, a aplicação do incidente ocorrerá apenas quando for configurado ato fraudulento ou abusivo. Portanto, por esta teoria, é exigida a comprovação dos requisitos previstos no art. 50 do Código Civil – desvio de finalidade, confusão patrimonial ou abuso de personalidade.
Uma vez que os julgadores consideram o instituto a última via possível, pois entendem os dados e os prejuízos que o instituto traz à pessoa jurídica e aos seus sócios, essa concepção é a mais adotada pelos tribunais do país, tendo, assim, um índice bem maior de aplicabilidade.
Teoria Menor
Já a Teoria Menor visa a proteção dos consumidores e não impõe a necessidade de prova de fraude. Como você já deve ter compreendido, é a concepção adotada pelo CDC, que prevê que, sempre que a personalidade for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores, haverá incidência da desconsideração da personalidade jurídica.
Essa teoria é baseada na hipossuficiência do credor e na sua dificuldade na comprovação em juízo dos requisitos referentes à má-fé do devedor.
Quais são os tipos de desconsideração da personalidade jurídica?
Em relação às modalidades de desconsideração da personalidade jurídica, atualmente, são admitidos quatro tipos:
- Desconsideração da personalidade jurídica clássica: conhecida também como “ortodoxa”, possibilita que a personalidade jurídica seja desconsiderada para que, havendo abuso nos termos do artigo 50 do CC, seja possível alcançar o patrimônio dos sócios;
- Desconsideração da personalidade jurídica inversa: tem a finalidade de alcançar determinadas pessoas jurídicas quando o titular da obrigação original que cometeu o abuso for seu sócio ou administrador;
- Desconsideração da personalidade jurídica indireta: tem o objetivo de alcançar conglomerados empresariais ou grupos econômicos que operam com fraudes e abusos para prejudicar terceiros e obter vantagens indevidas;
- Desconsideração da personalidade jurídica expansiva: quando o sócio devedor não se encontra explicitamente vinculado na sociedade, mas se utiliza de terceiros para constituir empresas – os sócios ocultos.
Desconsideração da personalidade jurídica: dúvidas frequentes
Por fim, confira as respostas para algumas das principais dúvidas em relação ao tema da desconsideração da pessoa jurídica.
Qual é a diferença entre despersonalização e desconsideração da personalidade jurídica?
Como vimos, a desconsideração representa a retirada temporária da personalidade jurídica, suspendendo os efeitos da separação patrimonial em um caso concreto específico. Por outro lado, a despersonalização anula definitivamente a personalidade da empresa, significando a destruição da entidade pessoa jurídica.
Quando cabe a desconsideração da personalidade jurídica trabalhista?
A desconsideração da personalidade jurídica foi introduzida formalmente na Justiça do Trabalho pelo artigo 855-A do CTT na Reforma Trabalhista. Este estipula as regras e procedimentos prévios ao bloqueio ou a restrição de valores ou bens dos sócios.
Conforme o regramento, o pedido de incidente de desconsideração pode ser instaurado na fase de conhecimento do processo, quando a devedora principal apresenta histórico recente de inadimplementos e insolvência.
Em quais situações a desconsideração da personalidade jurídica pode ocorrer?
As hipóteses nas quais a desconsideração é uma medida cabível para garantir o direito ao crédito do credor ou evitar prejuízo ao consumidor se relacionam com algumas práticas específicas:
- desvio de finalidade: ocorre quando sócios ou administradores utilizam a sociedade para fins diversos do objeto societário;
- confusão patrimonial: ocorre quando se confundem os bens e negócios dos sócios e administradores com os bens da pessoa jurídica;
- prejuízos ao consumidor: ocorre quando a personalidade jurídica representa um obstáculo para o ressarcimento de prejuízos causados ao consumidor.
A desconsideração da personalidade jurídica atinge todos os sócios?
Na redação original do art. 50, fala-se em bens particulares de quaisquer sócios. Mas, com a Lei da Liberdade Econômica, passou a estender as obrigações aos administradores (sócios ou não) e aos sócios que tivessem sido beneficiados pelo abuso.
Porém, recentemente, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), afastou os efeitos da desconsideração da personalidade jurídica em relação aos administradores não sócios de uma sociedade empresarial. Logo, ao que parece, existem diferentes acepções para contextos distintos.
Quais são os requisitos para desconsideração da pessoa jurídica?
Existem dois requisitos para a desconsideração da pessoa jurídica. São eles:
- Teoria Maior: abuso de personalidade, caracterizado por desvio de finalidade ou confusão patrimonial.
- Teoria Menor: qualquer obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.
É cabível a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica no procedimento do Juizado Especial Cível?
De acordo com o Art. 1.062 do Novo Código Civil, “o incidente de desconsideração da personalidade jurídica aplica-se ao processo de competência dos juizados especiais”.
Conclusão
A desconsideração da personalidade jurídica é um instituto jurídico que prevê a relativização da autonomia da personalidade jurídica de uma empresa, organização ou outro tipo de pessoa jurídica com a finalidade de atribuir responsabilidades aos seus administradores e sócios. Sendo assim, trata-se de um importante instrumento para o exercício da atividade empresarial.
Uma situação abusiva da autonomia patrimonial ocorre quando sócios e administradores não deixam na sociedade bens suficientes para o pagamento das dívidas da pessoa jurídica.
O incidente está previsto tanto no Código Civil (Teoria Maior) quanto no Código de Defesa do Consumidor (Teoria Menor), devendo-se ser utilizada aquela concepção que for adequada à situação em questão e cumprindo-se os requisitos, que são distintos.
Dada a relevância da matéria, é muito importante estar informado sobre as suas teorias, a legislação e as aplicações do instituto.
Ficou com alguma dúvida?